As consequências do novo coronavírus ao organismo podem variar desde um quadro leve ou assintomático até um completo “caos metabólico”, termo que ajuda a dimensionar o possível impacto da infecção em diversos órgãos e sistemas, comprometendo suas funções, o que pode levar até à morte. Porém, o legado da pandemia não vai se limitar às pessoas que adoeceram pela Covid-19.

De diversas maneiras, milhares de pessoas ao redor do mundo poderão ter suas vidas afetadas. Os indivíduos foram convidados a ficar em casa e evitar o contato com outras pessoas. Não há dúvidas de que essas medidas são cruciais para limitar a propagação do vírus, porém podem trazer grandes repercussões na rotina diária. Muitas pessoas também estão sofrendo com perdas pessoais, ou ainda interromperam o acompanhamento de doenças crônicas.

Sendo assim, a preservação da saúde entre aqueles não diagnosticados com a Covid-19 também é uma questão prioritária. O objetivo deste artigo é comentar como a pandemia, e não diretamente a infecção pelo novo coronavírus, pode afetar a saúde e a qualidade de vida da população, com possível impacto nas taxas de morbimortalidade em médio e longo prazo.

Pandemia de Covid-19 como gatilho no aparecimento ou piora de disfunções metabólicas

As mudanças nos hábitos de vida e no comportamento impostas pela pandemia levaram grande parte da população mundial a sofrer o impacto de uma série de fatores que, associados, se constituem em campo fértil para o ganho de peso e suas implicações metabólicas.

Ganho de peso

A obesidade também é uma pandemia que cresce rapidamente, com grandes consequências para a saúde pública. O acúmulo de gordura corporal, especialmente em território visceral, associado à redução da massa magra (obesidade sarcopênica), contribui para o agravamento da resistência à insulina e condições relacionadas.

Como consequência imediata do ganho de peso pode haver descontrole agudo de doenças crônicas como a hipertensão arterial e o diabetes, considerados fatores de risco para evolução mais grave da Covid-19, assim como acontece com a própria obesidade.

Já em longo prazo poderá haver incremento na incidência de doenças não transmissíveis (DNTs). Segundo o último relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), as DNTs foram responsáveis por 71% das mortes em todo o mundo.

As implicações do excesso de gordura corporal à saúde do indivíduo são inúmeras. A imagem abaixo, adaptada de artigo recentemente publicado na Endocrine Reviews, traz um resumo dos mecanismos que ligam o excesso de gordura corporal ao aumento do risco cardiovascular.

 

                   Reprodução de © Endocrine Society 2020, doi 10.1210/endrev/bnaa004 (licença CC 4.0)
Por outro lado, a perda de peso melhora muitos resultados cardiometabólicos. Além disso, pacientes obesos que perdem 11% a 16% do peso inicial se beneficiam com redução da inflamação sistêmica e subcutânea do tecido adiposo. Aplicando-se o conhecimento existente para outras doenças infecciosas pode-se extrapolar à Covid-19 que, mesmo não chegando ao peso normal, o risco diminui a níveis semelhantes.

Facilitação para o ganho de peso na pandemia pode estar relacionada a diversos fatores, como os relacionados a seguir. Muitos desses fatores têm ainda efeitos independentes do ganho de peso no aumento do risco de DNTs.

Sedentarismo

Embora de natureza diferente, o mundo convive com outra pandemia há vários anos – a pandemia da inatividade física (IF) e do comportamento sedentário(CS). O problema agora de agrava por que muitas oportunidades de atividade física foram suspensas, como a educação física escolar e programações esportivas diversas, além do fechamento de academias de ginástica e parques públicos. A infraestrutura para ser fisicamente ativo, que já não estava sendo utilizada pela maioria da população global antes da Covid-19, foi significativamente reduzida.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 3,2 milhões de mortes por ano são atribuídas a esse comportamento prejudicial ao estilo de vida, e, infelizmente, todos os dados indicam que a pandemia do sedentarismo persistirá por muito tempo depois que nos recuperarmos da pandemia de Covid-19.

As Diretrizes de Atividade Física dos EUA de 2018 reconhecem que o aumento no movimento físico, mesmo que abaixo das metas recomendadas, traz benefícios significativos à saúde. Um estudo recente sugere que dar pelo menos de 4 mil passos por dia, em qualquer ritmo (o que pode ser feiro em casa), melhora significativamente a saúde em longo prazo. A população deve ser aconselhada a “sentar-se menos e mover-se mais”.

Disrupção da rotina

Uma das melhores formas de manter a motivação para as atividades referentes ao trabalho, estudos, exercícios físicos e até para seguir um padrão alimentar saudável é permanecer em uma rotina. Quando a rotina é quebrada torna-se necessário incrementar o planejamento para cada uma dessas áreas, e a falta de perspectiva e de controle sobre a situação atual pode tornar mais difícil a tarefa de estabelecer novos padrões de comportamento que auxiliem no processo de manutenção de um estilo de vida saudável.

Mudança nos padrões alimentares

A atual pandemia trouxe novos desafios para o indivíduo manter uma dieta saudável. Mudanças nos padrões alimentares durante a pandemia podem ser desencadeadas pelo medo e pela ansiedade que muitas pessoas em todo o mundo estão experimentando. Condições de estresse, angústia e distúrbios emocionais podem se associar a padrões alimentares não saudáveis ​​e à má qualidade da dieta. Distúrbios alimentares podem ser deflagrados, ou se agravar.

Há ainda uma tendência à perda da rotina dos horários e da qualidade do sono, que também interferem nos mecanismos de controle do apetite e da saciedade.

O consumo excessivo de alimentos industrializados, que já havia sido reconhecido como uma barreira ao enfrentamento da obesidade, tende a aumentar nesse tipo de situação. Além disso, em muitos locais há maior dificuldade de acesso a alimentos perecíveis, ricos em nutrientes essenciais e com menor teor calórico. Sem falar nos casos em que os indivíduos optam por estocar alimentos em casa em grandes quantidades, favorecendo o consumo de um volume maior de calorias.

Todos esses fatores contribuem com o ganho de peso e disfunções metabólicas consequentes.

Saúde mental

Estudos relatam que pacientes afetados pela Covid-19 (ou com suspeita da infecção) podem sofrer reações emocionais significativas, como medo, tédio, solidão, ansiedade, insônia ou raiva. Essas condições favorecem a evolução para distúrbios depressivos e ansiedade (incluindo ataques de pânico e estresse pós-traumático), além de surtos psicóticos ou paranoicos, com potencial de levar até ao suicídio.

Em situações de distanciamento e isolamento social o sofrimento psicológico tende a ser maior, o que também é intensificado pela incerteza sobre os riscos individuais ou pelo medo de infectar familiares e amigos, o que pode potencializar estados mentais disfóricos.

Sendo assim, mesmo indivíduos que não foram afetados diretamente pela infecção estão vulneráveis ao impacto da pandemia na saúde mental. O acúmulo de funções e a sobrecarga de preocupações geradas pelas mudanças no que se refere a trabalho, tarefas domésticas, alimentação, transporte, questões econômicas e da educação, por exemplo, podem ser fatores desencadeantes. Outro fenômeno muito presente atualmente é o que foi rotulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como “infodemia” – termo que se refere à sobrecarga de informações, nem sempre verdadeiras ou úteis, capaz de aumentar especialmente o sofrimento por antecipação.

Sabe-se que pessoas com doenças psiquiátricas têm um risco aumentado de desenvolver SM em comparação com a população em geral.

Estresse

Embora sejam essenciais para a sobrevivência de um organismo, o aumento da secreção e os efeitos dos principais mediadores induzidos pelo estresse agudo também podem ter efeitos negativos. O estresse agudo pode levar a diferentes manifestações, como variações na pressão arterial, dor, sintomas gastrointestinais e distúrbios mentais, como ataques de pânico e psicose.

O estresse crônico causa um aumento da atividade basal do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) assim como maior capacidade de resposta ao eixo HHA. Nesse caso, os efeitos prolongados das moléculas efetoras do sistema de estresse podem levar a distúrbios nos tecidos alvo, incluindo um amplo espectro de doenças inflamatórias, metabólicas e neuropsiquiátricas. Quanto ao sistema imunológico, o estresse tem ações complexas.

As consequências endócrinas do efeito aumentado dos glicocorticoides (GCs) incluem a inibição do eixo do hormônio do crescimento, do eixo tireoidiano e do eixo gonadal, contribuindo para a perda de massa muscular e massa óssea, além do acúmulo de gordura visceral. A subsequente obesidade visceral e perda de massa muscular estão associadas a alterações dos parâmetros clínicos que compõem a síndrome metabólica: dislipidemia, hipertensão arterial e diabetes mellitus tipo 2, que podem levar a doenças cardiovasculares.

Aumento no tempo de exposição a telas

As mudanças de comportamento durante a pandemia favorecem o ganho de peso em crianças e adolescentes, o que pode ter efeitos significativos na saúde, especialmente se as medidas de confinamento forem duradouras.

As evidências atuais sugerem que o maior tempo de exposição a telas (computador, televisão, tablets, etc) pode levar à obesidade em crianças e adolescentes através de diversos fatores, como: aumento do consumo alimentar durante a visualização; exposição ao marketing de alimentos e bebidas de alta caloria e baixo teor de nutrientes, o que influencia as preferências, solicitações de compra e hábitos de consumo das crianças; além da redução da duração do sono, e possível estímulo ao comportamento sedentário.

Um estudo observacional longitudinal realizado em Verona, Itália, avaliou uma amostra de 41 crianças e adolescentes com obesidade. Informações sobre estilo de vida foram coletadas na linha de base e três semanas após o bloqueio nacional durante o qual o confinamento em casa era obrigatório para a contenção da Covid-19. A análise dos dados mostrou que o tempo gasto em atividades esportivas diminuiu em 2,30 ± 4,60 horas/semana (p = 0,003), e o tempo de sono aumentou 0,65 ± 1,29 horas/dia (p = 0,003). O tempo de tela aumentou em 4,85 ± 2,40 horas / dia (p <0,001).

Distúrbios do sono

Distúrbios do sono vêm sendo reconhecidos como mais uma das consequências da pandemia Covid-19. As implicações podem ser graves. Além das consequências cognitivas – da incapacidade de se concentrar à irritabilidade geral – a insônia crônica está relacionada a uma série de problemas de saúde como diabetes, doenças cardiovasculares e hipertensão arterial.

A insônia aumenta ainda o risco de depressão e diminui a resposta ao tratamento da doença. Tanto a duração do sono mais curta quanto mais longa, bem como a insônia, estão associados ao ganho de peso e à obesidade central.

Interrupção do acompanhamento de doenças crônicas

Estudos realizados na China, Itália e outros países mostraram que pacientes com câncer e outras doenças crônicas como diabetes, obesidade e hipertensão arterial, por exemplo, têm uma chance maior de desenvolver doença grave e morte por Covid-19 do que indivíduos saudáveis. Mas também é importante lembrar que o bom controle dessas condições pode diminuir o risco. Para manter doenças crônicas compensadas é fundamental que o acompanhamento médico seja mantido.

O medo de contrair a infecção, ou mesmo problemas econômicos que podem dificultar o acesso ao atendimento médico, tem afastado grande parte desses doentes dos serviços de saúde. Porém, a necessidade de prevenção e tratamento de doenças crônicas não desaparece durante uma pandemia. Além disso, postergar os procedimentos clínicos e cirúrgicos pode resultar em atrasos no diagnóstico e tratamento, e, finalmente, à morte por doenças crônicas e evitáveis ​​pela falta de gerenciamento adequado. Atrasos prolongados também poderão sobrecarregar os sistemas de saúde quando os procedimentos eletivos (porém não opcionais) forem retomados.

É possível que a falha na prevenção e gerenciamento de condições médicas crônicas leve a outras crises de saúde pública que poderão persistir muito tempo após a contenção do Covid-19.

Fechamento das escolas

Ambientes escolares fornecem estrutura e rotina em torno das refeições, atividades físicas e horários de sono, os três principais determinantes do estilo de vida implicados no risco de obesidade.

Baseados em pesquisas anteriores os autores de um estudo realizado na Itália especulam que o excesso de peso ganho durante o bloqueio pode não ser facilmente reversível, contribuindo para o excesso de adiposidade durante a vida adulta.

Os dados corroboram com a ideia de que a pandemia de Covid-19 tem efeitos colaterais que se estendem além dos efeitos diretos da infecção viral. Crianças e adolescentes que lutam contra a obesidade são colocados em uma posição de isolamento que parece criar um ambiente desfavorável para manter comportamentos que contribuam com um estilo de vida saudável.

Deficiência de vitamina D

Enquanto o distanciamento social e o “ficar em casa” limitam prontamente a transmissão do novo coronavírus de pessoa a pessoa, pode favorecer o aumento na incidência da deficiência de vitamina D. As principais consequências recaem sobre a saúde musculoesquelética, com aumento do risco de fraturas caso a condição não seja detectada e tratada adequadamente.

É importante lembrar também que a suplementação diária ou semanal de vitamina D pode oferecer proteção contra infecções respiratórias agudas, porém apenas entre indivíduos que apresentam deficiência grave da vitamina (25(OH)D < 10ng/mL)21. No entanto, não há nenhuma comprovação científica de que a administração de vitamina D em altas doses, ou em situações em que não exista deficiência, possa trazer qualquer benefício contra a Covid-19.

 

                      Fatores de risco para a descompensação metabólica exacerbados pelas condições de hábitos de vida relacionadas à pandemia.

Conclusões

Além do impacto da própria doença (Covid-19) ao organismo, precisamos conhecer as consequências sociais, políticas, econômicas e culturais da pandemia. E nesse contexto, torna-se ainda essencial que tenhamos uma visão sistêmica da implicação da associação de múltiplos fatores na saúde da população, não só em curto, mas também em longo prazo.

Além de manter os cuidados necessários para a contenção da infecção pelo novo coronavírus, é urgente que medidas sejam tomadas para a prevenção e/ou melhor controle das enfermidades que mais matam em todo o mundo: as doenças não transmissíveis (DNTs).

As doenças cardiovasculares e o diabetes, por exemplo, têm agora seus principais fatores desencadeantes sendo exacerbados pelas mudanças impostas pela pandemia.

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Artigo publicado no Portal PEBMED em 26 Maio de 2020.

 

Autora: Daniele C. Tokars Zaninelli, endocrinologista em Curitiba.