Sabemos que o aumento da gordura corporal pode levar a uma série de desequilíbrios hormonais, e a fisiologia normal costuma ser restaurada pela perda de peso. Por outro lado, doenças hormonais podem estar presentes na obesidade. Diferenciar essas duas situações nem sempre é fácil.
Para evitar que disfunções hormonais concomitantes à obesidade sejam diagnosticadas e tratadas equivocadamente, a Sociedade Europeia de Endocrinologia lançou recentemente diretrizes clínicas sobre a investigação endócrina na obesidade.
Neste artigo vamos falar sobre as questões que merecem atenção na avaliação e tratamento das alterações das provas de função tireoidiana associadas à obesidade.
Obesidade
Abaixo seguem dez recomendações importantes quanto ao diagnóstico e tratamento da disfunção tireoidiana na obesidade:
1. Perda de peso
Uma das primeiras recomendações desta diretriz é que a perda de peso na obesidade seja enfatizada como chave para a restauração dos desequilíbrios hormonais, já que para a maioria dos hormônios (TSH, cortisol, testosterona) o equilíbrio adequado é geralmente restaurado após a perda de peso, independentemente da estratégia escolhida para isto.
2. Hipertireotropinemia associada à obesidade
A hipertireotropinemia associada à obesidade deve ser diferenciada do hipotireoidismo subclínico relacionado à autoimunidade, já que na obesidade o aumento do TSH sérico (na ausência de anticorpos antitireoidianos) é provavelmente uma resposta adaptativa em vez do evento principal.
3. Função tireoidiana
Todos os pacientes com obesidade devem ter a função tireoidiana avaliada. O hipotireoidismo concomitante à obesidade é bastante prevalente e poderia potencializar o ganho de peso e contribuir para um perfil lipídio desfavorável e aumento do risco cardiovascular.
4. TSH
Recomenda-se que a avaliação seja baseada no TSH. Se o TSH estiver elevado, T4 livre e anticorpos antiperoxidase (ATPO) devem ser dosados. A causa mais comum de hipotireoidismo é a tireoidite crônica autoimune. A dosagem de ATPO é útil para diagnosticar hipotireoidismo autoimune e para prever o risco de evolução para hipotireoidismo declarado.
5. Dosagem t3 livre
Não é recomendada a dosagem de T3 livre (FT3) de rotina em pacientes com TSH elevado por vários motivos:
- A dosagem da triiodotironina (T3) total ou livre não é útil para detectar o hipotireoidismo, pois os níveis são geralmente normais devido à hiperestimulação (pelo TSH elevado) do tecido tireoidiano funcionante remanescente;
- O nível de triiodotironina livre (T3L) é difícil de interpretar porque muitas condições extra-tireoidianas agudas ou crônicas (envolvendo estado nutricional e inflamação sistêmica) podem reduzir a conversão de T4 em T3, um mecanismo conhecido como “doença não tireoidiana”, “síndrome do eutireoidiano doente” ou “síndrome do T3 baixo”. São poucos os dados sobre a incidência de doença não tireoidiana na população obesa, mas uma publicação sugeriu que a inflamação pode aumentar a doença não tireoidiana na obesidade;
- Em contraste, a T3L foi descrita como sendo mais alta na obesidade do que em pessoas magras, o que se relaciona principalmente ao estado nutricional. Isso mostra que a interpretação da T3L na obesidade não é direta.
6. Valores hormonais
Os mesmos valores hormonais aplicados para a população geral devem ser usados para a população obesa.
Na obesidade os níveis de TSH geralmente são maiores que em indivíduos com peso normal por idade e sexo, e estão correlacionados com o índice de massa corporal (IMC). Entenda o porquê:
- A elevação do TSH pode refletir diminuição das concentrações de hormônios tireoidianos, explicada pelo aumento do volume plasmático ou aumento da taxa de eliminação do hormônio tireoidiano na obesidade, causando uma ativação compensatória do eixo hipófise-tireoide.
- Essa interpretação está alinhada com os níveis mais baixos de FT4 na obesidade, juntamente com a necessidade de doses mais altas de L-tiroxina substitutiva em pacientes hipotireoidianos com obesidade.
- Outros mecanismos propostos para explicar essas modificações incluem aumento de leptina e insulina.
7. Hipotireoidismo
Sobre o tratamento do hipotireoidismo na obesidade:
- Recomenda-se que o hipotireoidismo manifesto (TSH elevado e T4L baixo) seja tratado na obesidade independentemente dos anticorpos.
- L-tiroxina é o hormônio de escolha. Nenhum benefício adicional foi demonstrado com a combinação de L-tiroxina e L-triodotironina.
Cuidados na escolha da dose inicial e no ajuste da dose são necessários em pacientes com hipotireoidismo declarado de longa duração, particularmente idosos e/ou com doenças cardiovasculares.
O alvo de TSH é o mesmo da população em geral e não deve ser ajustado com o objetivo de reduzir o IMC. A dosagem de T3L e T4L não é recomendada para monitoramento do tratamento.
8. Hormônios tireoidianos
Recomenda-se contra o uso de hormônios tireoidianos para tratar a obesidade em caso de função tireoidiana normal.
Muitos estudos têm sido realizados para investigar a capacidade do hormônio tireoidiano ou de seus análogos em favorecer a perda de peso sem produzir efeitos adversos devido à tireotoxicose iatrogênica. No geral, esses estudos têm demonstrado apenas efeitos menores em termos de eficácia, enquanto evidenciam aumento da excreção urinária de nitrogênio, indicando perda de tecido livre de gordura, ao lado da ocorrência de efeitos adversos no metabolismo ósseo e no estado afetivo.
Além disso, hormônio tireoidiano excessivo em pacientes com obesidade já em risco de doença cardiovascular pode facilitar o aparecimento de arritmia cardíaca, insuficiência cardíaca ou eventos isquêmicos.
9. Hipertireotropinemia
A hipertireotropinemia (TSH elevado e T4L normal) não deve ser tratada na obesidade com o objetivo de reduzir o peso corporal.
TSH levemente aumentado (<10 mUI/L) na presença de T4L normal é um achado comum na obesidade, e não é suficiente para diagnosticar o hipotireoidismo. A pesquisa da Whickham estimou que a progressão anual do hipotireoidismo subclínico para hipotireoidismo evidente é de 2–5%, e a taxa pode ser menor na obesidade. Além disso, ensaios clínicos randomizados não relataram diferença no IMC com o tratamento com levotiroxina comparado com placebo no hipotireoidismo subclínico. Uma metanálise recente mostrou que o tratamento do hipotireoidismo subclínico não melhora sintomas como excesso de peso ou qualidade de vida.
aixos valores de TSH são frequentemente encontrados em pacientes tratados com levotiroxina, com potencial de causar efeitos colaterais. De fato, entre 10 e 33% dos indivíduos em terapia com levotiroxina apresentam valores de TSH abaixo do normal, e em aproximadamente um terço à metade desses os níveis de TSH são inferiores a 0,1 mUI/L.
10. Tratar ou não a hipertireotropinemia?
Os autores sugerem que, para a decisão de tratar ou não tratar a hipertireotropinemia, os níveis de TSH, anticorpos antitireoidianos e idade devam ser levados em consideração. Recomendam ainda contra o uso de ultrassom de rotina da tireoide, independentemente da função tireoidiana.
Certamente, os hormônios da tireoide têm um papel importante no metabolismo energético e o hipotireoidismo poderia de fato induzir ganho de peso devido a:
- Ligeira diminuição do gasto energético em repouso;
- Redução da atividade física;
- Retenção de líquidos devido ao acúmulo de glicosaminoglicanos.
Apesar disso, o ganho de peso no hipotireoidismo é de extensão limitada. O tratamento do hipotireoidismo é seguido por um leve aumento no gasto energético em repouso, mas apenas uma modesta perda de peso é alcançada (menos de 10% do peso corporal), sendo determinada principalmente pela excreção do excesso de água corporal.
Conclusões
Os autores reforçam a recomendação de que o tratamento com hormônio tireoidiano não deve ser iniciado apenas com base no achado de hipertireotropinemia, uma vez que a perda de peso é improvável e pode impedir o paciente de buscar tratamento adequado da obesidade.
Referências bibliográficas:
- Pasquali R. et al. European Society of Endocrinology Clinical Practice Guideline: Endocrine work-up in obesity. Eur J Endocrinol. 2020 Jan;182(1):G1-G32.
Artigo publicado no Portal PEBMED em 05 Março de 2020.
Autora: Daniele C. Tokars Zaninelli, endocrinologista em Curitiba.