Aproximadamente um em cada 500 adultos é um sobrevivente do câncer infantil. A prevalência de desordens endócrinas nessa população é de cerca de 50%. Pesquisas realizadas nos últimos 20-30 anos focaram primariamente em descrever a prevalência e os fatores de risco associados a essas condições.
Consequências endócrinas, particularmente relacionadas à radioterapia, ocorrem muitos anos após o término do tratamento, e são referidas como “efeitos tardios”. Este fenômeno leva à necessidade de atenção aos riscos em longo prazo e à potencial contribuição para piores desfechos de saúde.
No ENDO 2021, Congresso da Endocrine Society, o tema foi discutido com foco nos efeitos tardios mais comuns, como deficiência de GH e problemas de tireoide relacionados ao manejo do câncer infantil, além dos desafios relacionados à obesidade e ao diabetes mellitus nesses pacientes.
Neste artigo, comentaremos os efeitos tardios que mais comumente afetam o eixo hipotálamo hipofisário.
Disfunção hipotálamo-hipofisária como efeito tardio do tratamento do câncer infantil
Em sua abordagem ao tema, a Dra. Laurie Cohen chamou atenção para os seguintes fatos:
A disfunção hipotálamo-hipofisária é frequentemente observada em sobreviventes de câncer infantil, especialmente naqueles com tumores envolvendo a região hipotálamo-hipofisária, ou naqueles previamente submetidos à radiação do sistema nervoso central.
A disfunção hipotálamo-hipofisária induzida por radiação é dose e tempo dependente. O crescimento linear prejudicado e a baixa estatura adulta são mais comuns em sobreviventes expostos à irradiação do sistema nervoso central, da coluna ou do corpo total em uma idade mais jovem.
Embora a investigação e o tratamento de muitos desses distúrbios em sobreviventes do câncer sejam semelhantes aos da população sem câncer, é importante observar as diretrizes específicas.
A deficiência de hormônio de crescimento (GHD) é a deficiência mais comum da hipófise anterior após tratamento do câncer na infância. Há muitos desafios envolvendo o diagnóstico e o tratamento desses pacientes. Veja mais detalhes aqui.
A Dra. Laurie enfatizou que:
A busca pelo diagnóstico deve ser ativa, e essas crianças devem ter sua estatura aferida a cada seis a 12 meses;
Testes formais não são necessários para o diagnóstico da DGH se existirem três outros déficits hormonais da adeno-hipófise confirmados;
Deve ser mantida avaliação periódica para DGH ao longo da vida;
Recomenda-se retestar adultos sobreviventes de câncer expostos a radioterapia sobre o eixo hipotálamo hipofisário com diagnóstico de DGH isolada na infância, o que não é necessário na presença de 3 outras deficiências confirmadas.
Devemos lembrar que existem outros fatores além da DGH influenciando o crescimento de sobreviventes do câncer pediátrico, e eles não são totalmente compreendidos. Ou seja, déficit de crescimento nesses pacientes não é sinônimo de DGH, e o tratamento com GH só deve ser feito se houver comprovação da deficiência através de critérios específicos.
A Dra Cohen comentou ainda que após o tratamento radioterápico pode haver disfunção parcial do eixo hipotálamo-hipofisário, fazendo com que a DGH se manifeste apenas em situações de maior demanda, como por exemplo a puberdade.
O uso de GH é seguro em sobreviventes de câncer?
Não há dados que indiquem aumento de malignidades secundárias com uso de GH para tratar pessoas com deficiência. O GH pode ser prescrito com segurança nessa população, porém sugere-se iniciar a reposição após um ano livre de doença após conclusão do tratamento para a doença maligna.
Quando se tratar de doença crônica estável, e o paciente não puder ser considerado como livre de doença (particularmente tumores de via óptica), recomenda-se discutir o caso com o oncologista.
Outras disfunções hipofisárias relacionadas ao tratamento do câncer pediátrico podem se desenvolver ao longo da vida.
O GH geralmente é o primeiro hormônio a ser afetado, e a sequência temporal de deficiência de outros eixos é variável. Recomenda-se fazer screening para deficiência de LH/FSH, TSH e ACTH em casos de exposição do eixo hipotálamo hipofisário à radiação com doses >30Gy e naqueles com história de tumores ou cirurgia afetando essa região.
A maioria das deficiências são identificadas dentro dos primeiros 6 anos após o diagnóstico tumoral. Um estudo avaliando 748 adultos sobreviventes do câncer pediátrico (St Jude Lifetime Cohort Study) mostrou os seguintes resultados:
Deficiência de GH se desenvolveu em 48,5% dos pacientes;
Deficiência de FSH/LH: em 10,8%;
Deficiência de TSH: em 7,5%;
Deficiência de ACTH: em 4%.
Insuficiência adrenal secundária
Apesar da baixa frequência, é importante proceder investigação para insuficiência adrenal secundária na presença de sintomas, muitas vezes inespecíficos, como fadiga, perda de peso, tontura, dor abdominal e náuseas, hipoglicemia ou hiponatremia.
Veja abaixo alguns alertas práticos para o acompanhamento desses pacientes:
Em alguns casos o tratamento com GH pode normalizar a hiperatividade da 11β-HSD tipo 1 e desmascarar um quadro de insuficiência adrenal central;
Estrogenioterapia oral aumenta os níveis de cortisol sérico. Nesses casos a dosagem normal do cortisol não reflete necessariamente um eixo normal;
A reposição com levotiroxina pode precipitar crise adrenal em pacientes com doença de Addison. No caso de insuficiência adrenal secundária os dados não são tão fortes, mas cuidado é necessário.
O acompanhamento de sobreviventes de câncer infantil deve ser feito a longo prazo, com atenção especial às possíveis consequências endócrinas do tratamento da malignidade.
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Referências bibliográficas:
Hypothalamic–Pituitary and Growth Disorders in Survivors of Childhood Cancer: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. JCEM August 2018.
Long-Term Follow-Up Guidelines for Survivors of Childhood, Adolescent and Young Adult Cancers.
ENDO2021: Precision Management of Late Endocrine Effects in Cancer Survivors. Dra Laurie Cohen.
Artigo publicado no Portal PEBMED em 29 Março de 2021.
Autora: Daniele C. Tokars Zaninelli, endocrinologista em Curitiba.