Cirurgia metabólica para tratamento do DM2: Por que? Para quem? Como? E depois?
Baseado em evidências de que os procedimentos bariátricos podem melhorar acentuadamente ou até mesmo levar à remissão do diabetes mellitus tipo 2 (DM2), recentemente o Conselho Federal de Medicina (CFM) passou a reconhecer que a cirurgia pode ser considerada como opção terapêutica para portadores de DM2 com obesidade leve (IMC entre 30 e 34,9 kg/m²), desde que obedecidos critérios rigorosos para a seleção dos pacientes.
Com o provável aumento da procura por esta modalidade terapêutica, devemos estar preparados para identificar quais pacientes se beneficiarão e/ou podem ser submetidos ao procedimento. Além do IMC, fatores como idade, tipo de diabetes, tempo de evolução da doença e capacidade residual do pâncreas em produzir insulina devem ser levados em consideração, conforme será discutido adiante. O acompanhamento pós-operatório também exige cuidados especiais.
O parecer nº38/2017 do CFM determina que a equipe de assistência a esses pacientes deve ser composta por: cirurgião geral ou do aparelho digestivo, endocrinologista, cardiologista, pneumologista, nutricionista, psicólogo, fisioterapeuta e enfermeiro, e, quando necessário, gastroenterologista, nutrólogo e equipe multiprofissional de terapia nutricional, psiquiatra, angiologista, entre outros.
Portanto, independentemente da área de atuação, todos devemos estar familiarizados com esses procedimentos.
Como a cirurgia metabólica pode melhorar o controle do diabetes?
O termo “cirurgia metabólica” é empregado para definir qualquer procedimento cirúrgico que leve à modificação anatômica do trato gastrointestinal, resultando em melhor controle metabólico das comorbidades agravadas pelo excesso de peso, entre elas o DM2.
A cirurgia modifica os mecanismos da fisiologia gastrointestinal envolvidos na regulação metabólica. Nesse processo estão envolvidos hormônios intestinais, ácidos biliares e microbiota intestinal, além da relação do trato gastrointestinal com os nutrientes da dieta. Como resultado ocorre aumento da secreção e da sensibilidade à insulina, aumento da saciedade e perda de peso.
Quais as chances de remissão do diabetes com o procedimento cirúrgico?
As taxas de remissão do DM2 variam de acordo com o tipo de procedimento realizado. Os melhores resultados são obtidos com cirurgias que associam redução gástrica e derivação intestinal.
Diversos estudos têm demonstrado que, num período de 1 a 5 anos de acompanhamento pós-operatório, cerca de 30 a 60% dos pacientes apresentam normalização sustentada das glicemias sem uso de medicamentos hipoglicemiantes. Porém, ao longo do tempo, cerca de 35 a 50% dos pacientes que obtiveram remissão inicial do DM2 sofrem recorrência.
Apesar da possibilidade de recorrência do DM2, grande parte dos pacientes submetidos à cirurgia apresenta melhora do controle glicêmico, o que pode se manter por um período de 5 a 15 anos. Fatores como a duração inicial do diabetes (ex: > 8 anos), uso de insulina e pior controle glicêmico estão associados a menores taxas de remissão do diabetes e/ou maior risco de reincidência.
Como selecionar os pacientes?
Os seguintes critérios são essenciais para a indicação do procedimento:
- Dois endocrinologistas devem atestar refratariedade ao tratamento clínico.
- Refratariedade ao tratamento clínico se caracteriza pela falta de controle metabólico após acompanhamento regular com endocrinologista por, no mínimo, dois anos, abrangendo mudanças no estilo de vida (dieta e exercícios físicos), além do tratamento clínico com antidiabéticos orais e/ou injetáveis.
- IMC acima de 30 kg/m².
- Menos de 10 anos de história da doença.
- Idade mínima de 30 anos (evitando o pico de incidência do diabetes autoimune do adulto, que ocorre entre 25 e 30 anos de idade) e máxima de 70 anos.
Fonte: resumo das recomendações e diretrizes do 2nd Diabetes Surgery Summit
A tabela abaixo resume o escore de risco metabólico, que foi estabelecido em 2016 por uma diretriz elaborada em conjunto pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) e Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva (CBCD). A proposta é que diversos fatores sejam levados em consideração para a melhor seleção de pacientes.
Adaptado de: o papel da cirurgia metabólica para o tratamento de pacientes com obesidade grau I e diabetes tipo 2 não controlado clinicamente. Arq Bras Cir Dig. 2016. Josemberg Campos et al.
Quais as contraindicações ao procedimento?
- Diagnóstico de diabetes tipo 1 (DM1): risco de cetoacidose diabética no pós-operatório.
- Uso abusivo atual de álcool ou drogas.
- Doença psiquiátrica não controlada.
- Compreensão inadequada dos riscos e benefícios, resultados esperados ou alternativas de tratamento.
- Falta de comprometimento com suplementação nutricional e acompanhamento de longo prazo necessários após o procedimento.
Quais as técnicas cirúrgicas mais indicadas?
A derivação gastrojejunal em Y-de-Roux (DGJYR) é a cirurgia de 1ª escolha, e a gastrectomia vertical (GV) é a alternativa caso haja alguma contraindicação ou desvantagem da DGJYR. Nenhuma outra técnica cirúrgica é reconhecida para o tratamento destes pacientes (CFM).
Ambas são cirurgias de alta complexidade, necessitando de equipes multidisciplinares experientes e hospitais de grande porte para sua realização. A representação esquemática das duas técnicas pode ser vista na imagem abaixo:
Fonte: resumo das recomendações e diretrizes do 2nd Diabetes Surgery Summit
Cuidados pré-operatórios
A avaliação clínica pré-operatória deve incluir: avaliação global de saúde do paciente: endócrina, metabólica, física, nutricional e psicológica. Recomenda-se uma combinação de exames de rotina, além de avaliações específicas referentes ao diabetes:
- HbA1c, glicemia de jejum, entre outros.
- Avaliação das complicações crônicas do DM2: retinopatia, nefropatia e neuropatia.
- Testes para diferenciar DM1 de T2D (peptídeo C em jejum, anti-GAD, outros autoanticorpos).
- Obter controle glicêmico adequado visando reduzir o risco de infecção e outras complicações relacionadas ao procedimento cirúrgico.
Quando se alcança a normalização do controle glicêmico após a cirurgia o assunto está encerrado?
Não! Alguns cuidados pós-operatórios são essenciais:
- Relacionados ao procedimento – recomendações de rotina para cirurgia bariátrica.
- Relacionados ao diabetes
- O acompanhamento pós-operatório deve incluir avaliações cirúrgicas e clínicas a cada 6 meses, ou mais frequentemente se necessário, nos primeiros 2 anos de pós-operatório, e a seguir ao menos anualmente.
- Mesmo pacientes que obtém remissão do diabetes após a cirurgia continuam sendo considerados de alto risco para doenças cardiovasculares e para o desenvolvimento e/ou progressão das complicações crônicas da doença (retinopatia, nefropatia, neuropatia).
- Após a cirurgia o controle glicêmico deve ser monitorado com a mesma frequência que no tratamento padrão do diabetes em pacientes não operados, com ajuste da medicação para a prevenção da hipoglicemia.
- A glicemia não-diabética estável (HbA1c normal) deve ser documentada por pelo menos dois ciclos de 3 meses antes de se considerar a retirada completa dos hipoglicemiantes.
- Para pacientes que atingiram a normalização estável da hiperglicemia durante, pelo menos, 6 meses deve-se manter monitorização glicêmica com a mesma frequência recomendada para pacientes com pré-diabetes devido ao risco de recidiva.
- Outros fatores de risco para doença cardiovascular, como hipertensão e dislipidemia, também devem ser controlados.
Cirurgia para diabetes. Simples assim?
O diabetes e a obesidade são doenças crônicas. O controle clínico nem sempre é fácil e muitos casos exigem o uso de diversos medicamentos, fazendo com que o tratamento cirúrgico pareça a solução para todos os problemas, porém, não devemos esquecer que este se trata de um procedimento de alta complexidade técnica, e não dispensa acompanhamento especializado a longo prazo.
Apesar do risco relativamente baixo de complicações cirúrgicas, a aplicação das técnicas de cirurgia bariátrica para o controle do diabetes não deixa de levar os pacientes a uma desnutrição programada, havendo risco de desenvolver outros problemas clínicos.
Os pacientes devem estar cientes de que, apesar da provável redução ou até mesmo suspensão (algumas vezes temporária) dos medicamentos antidiabéticos, estes deverão ser substituídos por suplementos vitamínicos por tempo indeterminado.
Pesquisas mostram que apenas um terço dos pacientes aderem à suplementação, portanto o risco de complicações como baixa massa óssea/osteoporose além de manifestações clínicas diversas associadas a deficiências nutricionais variadas existe. Sintomas digestivos e intolerâncias alimentares também podem passar a fazer parte do dia a dia desses pacientes.
Outra questão que tem sido discutida é a interferência na absorção de medicamentos utilizados no tratamento de diversas patologias. Estudos são necessários para avaliar a interferência na absorção de antimicrobianos, anticoagulantes e quimioterápicos, apenas como exemplo.
Possíveis mudanças no padrão de consumo, absorção e metabolismo do álcool também não devem ser negligenciadas. Portanto, a cirurgia bariátrica/metabólica não pode ter seu risco subestimado. A indicação do procedimento deve ser consciente e criteriosa para garantir que os benefícios compensem os riscos.
Escrito por
Especialista em Endocrinologia e Metabologia e mestre pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e atua na área há mais de 20 anos. É membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), e da Sociedade Brasileira para o Estudo da Obesidade (ABESO). Faz parte da diretoria da SBEM-PR.