Um dos grandes desafios no tratamento do diabetes é alcançar o equilíbrio dos níveis glicêmicos sem levar a episódios de hipoglicemia. A presença e gravidade de complicações e/ou comorbidades, expectativa de vida, preferências do paciente, além de fatores sociais, devem ser levados em consideração para a escolha do alvo terapêutico4,5.
O objetivo deste artigo é abordar as questões envolvidas nas divergências entre as recomendações das principais organizações médicas envolvidas no tratamento do diabetes quanto ao melhor alvo de hemoglobina glicada (A1C) para pacientes adultos, não gestantes, com diabetes tipo 2 (DM2).
Estudos de intervenção de longo prazo comparando tratamento padrão versus intensivo do diabetes têm demonstrado uma clara associação entre pobre controle glicêmico prolongado e desenvolvimento de complicações microvasculares, e, em menor grau, macrovasculares. Ao longo da última década, os efeitos deletérios tanto da variabilidade glicêmica a curto prazo (flutuações diárias da glicose), como das variações de longo prazo, medidas pelas alterações na glicemia de jejum (GJ) e A1C, têm sido propostos, embora evidências definitivas sobre desfechos clínicos significativos permaneçam escassas1.
A escolha do melhor alvo terapêutico no tratamento do DM2 é um assunto complexo, motivo frequente de debate entre especialistas, não havendo ainda unanimidade em sua definição (quadro 1).
Quadro 1: Metas de A1c para DM2 propostas por diferentes organizações médicas envolvidas no manejo do paciente com diabetes.
*American Diabetes Association (ADA);EASD Europeans Association for theb Study of Diabetes; the American Association of Clinical Endocrinologists (AACE); American College of Endocrinology (ACE); National Institute for Health and Care Excellence (NICE); American College of Physicians (ACP).
**Baixo risco: pacientes mais jovens e saudáveis; Alto risco: doença de longa data, com mais complicações e/ou comorbidades; Maioria: grupo intermediário.
Divergência entre diretrizes sobre diabetes
As principais organizações de saúde envolvidas no cuidado ao paciente com diabetes concordam que as metas e estratégias de tratamento devem considerar as necessidades e preferências de cada paciente, no entanto, um conjunto de orientações publicado recentemente pelo American College of Physicians (ACP), que defende o relaxamento das metas de controle da A1C no DM2, gerou grande discussão, já que as mesmas estão em desacordo com aquelas de outras organizações profissionais, incluindo a American Diabetes Association (ADA)13.
Para desenvolver as novas recomendações do ACP, os autores avaliaram seis conjuntos de diretrizes atuais de outras organizações, e revisaram ensaios clínicos importantes nos quais essas diretrizes se embasam, o que resultou em quatro declarações-chave2 (quadro 2).
Logo após a publicação das novas diretrizes do ACP, uma declaração conjunta envolvendo a Endocrine Society, ADA, AACE e American Association of Diabetes Educators (AADE) foi publicada expressando forte desacordo com algumas dessas recomendações7, alertando sobre a preocupação de que, se as mesmas forem amplamente adotadas na prática clínica, o recente progresso no manejo do diabetes pode ser ameaçado13.
Cada uma das recomendações do ACP requer comentários específicos. As principais justificativas e/ou divergências entre as organizações médicas citadas, quanto à escolha do melhor alvo terapêutico com base nos níveis de A1C, são comentadas no quadro 2 3,6,7,13.
Quadro 2 – Novas recomendações da ACP / justificativas para as mudanças no alvo de A1C para pacientes adultos com DM2 não gestantes / divergências.
Recomendações ACP 2018 | Justificativas / Divergências ACP ENDOCRINE SOCIETY / ADA / AACE / AADE | ||
Declaração 1: Os clínicos devem personalizar as metas para o controle glicêmico em pacientes com DM 2. | – Deve-se personalizar a terapia de acordo com benefícios e riscos do tratamento, saúde geral e expectativa de vida, preferências do paciente, carga e custos do tratamento. | – A abordagem personalizada deve incluir uma avaliação da duração da doença de cada paciente, expectativa de vida, comorbidades, capacidade de autocuidado e preferências em relação às opções de tratamento. | |
Declaração 2: Os clínicos devem procurar alcançar um nível de A1C entre 7% e 8% na maioria dos pacientes com DM 2. | – Mais de metade dos pacientes com DM2 nos EUA tem idade avançada, comorbidades, complicações diabéticas preexistentes, ou longa duração da doença. – Nenhum estudo de tratamento para alvo incluiu os medicamentos mais novos, que apresentam efeitos discretos nos níveis de A1c. Eles podem reduzir a morbidade e a mortalidade quando usados como terapia adicional (em vez de tratar o alvo) em pacientes de alto risco, entretanto, embora esses medicamentos tenham menor risco de hipoglicemia, eles podem gerar outros danos, acrescentam carga ao tratamento e são caros. | – O tratamento menos intensivo pode ser apropriado para alguns pacientes, como aqueles com histórico de hipoglicemia, comorbidades ou expectativa de vida limitada. Os pacientes de alto risco são comuns, mas não são a maioria. – Deve-se considerar que os novos medicamentos e sistemas de monitoramento disponíveis para o tratamento do DM2 podem ser a chave para um controle mais estrito das glicemias sem aumento do risco de hipoglicemias graves, além de poderem oferecer proteção cardiovascular¹º. | |
Declaração 3: Os clínicos devem considerar a redução da terapia farmacológica em pacientes com diabetes tipo 2 que atingem níveis de A1C inferiores a 6,5% | – O tratamento farmacológico abaixo desse alvo apresenta riscos substanciais (hipoglicemia, risco cardiovascular segundo o estudo ACCORD*), além de gerar custos para o paciente. – Os autores afirmam que nenhum ensaio mostra que atingir níveis de A1C abaixo de 6,5% em pacientes diabéticos melhora os resultados clínicos. | – Interpretação equivocada do ACCORD* pelo ACP; não consideraram os achados de segurança de estudos como **ADVANCE e ***VADT. – O efeito legado (controle intensivo precoce da glicemia com benefícios a longo prazo, particularmente para aqueles recém-diagnosticados com DM2) foi negligenciado pelos autores 11. – Existem dados suficientes para sugerir a ocorrência de complicações microvasculares e macrovasculares mesmo no estado de pré-diabetes 8. | |
Declaração 4: Os clínicos devem tratar pacientes com diabetes tipo 2 para minimizar os sintomas relacionados à hiperglicemia evitando determinar um nível de A1c em pacientes com expectativa de vida inferior a 10 anos devido a: idade avançada (80 anos ou mais), residência em um lar de idosos ou doenças crônicas (como demência, câncer, doença renal em estágio final, doença pulmonar obstrutiva crônica grave ou insuficiência cardíaca congestiva), porque nessa população.os danos superam os benefícios. | – Quando a expectativa de vida é menor que 10 anos há poucos benefícios (cardiovasculares/morte) ao se estabelecer metas de A1c, o que deve ser avaliado em relação aos riscos que incluem, mas não se limitam, à hipoglicemia e carga do tratamento. – O objetivo deve ser o controle dos sintomas associados à doença e aos medicamentos. | – Além do controle dos sintomas, é preciso prevenir piora da hiperglicemia que pode progredir com cetoacidose / hiperosmolaridade e risco de vida. – A1C> 9% pode estar associada à piora da qualidade de vida, aumento do risco de neuropatia dolorosa e suscetibilidade a infecções bacterianas e fúngicas, portanto, não é apropriado dispensar metas glicêmicas individualizadas nesse grupo de pacientes. |
Estudo ACCORD: The Action to Control Cardiovascular Risk in Diabetes/2008; **ADVANCE: Action in Diabetes and Vascular disease: PreterAx and Diamicron MR Controlled Evaluation; VADT: Veterans Affairs Diabetes Trial.
Conclusão
É importante lembrar que estratégias para o controle da glicemia em pacientes com diabetes deveriam abordar os três principais componentes da disglicemia: hiperglicemia crônica, hipoglicemia e variabilidade glicêmica, fatores que contribuem para o desenvolvimento e progressão das complicações da doença 1. Outros fatores de risco também devem ser abordados adequadamente 12.
E qual o melhor alvo de A1C para nossos pacientes?
Na falta de evidências conclusivas, uma única resposta correta parece não existir. Mais do que uma interpretação das diretrizes ao pé da letra, vale a discussão que as divergências trazem, levantando pontos importantes para uma avaliação equilibrada de riscos e benefícios de curto e longo prazo na escolha do melhor tratamento para cada indivíduo.
Como enfatizado na declaração do ACP, o potencial dano pelo tratamento desnecessariamente intensivo de pacientes vulneráveis é uma preocupação real. Por outro lado, a ADA declara preocupação quanto ao estímulo à inércia no tratamento, especialmente entre os pacientes mais jovens, visto que mesmo elevações modestas de glicose durante longos períodos de tempo aumentam substancialmente os riscos de retinopatia, insuficiência renal, neuropatia, amputações e eventos cardiovasculares 13.
A maioria das organizações médicas especializadas sugere que uma meta razoável de A1C para muitos adultos não gestantes é <7%, que metas mais rigorosas de A1C (como <6.5%) podem ser buscadas para indivíduos selecionados, desde que isso possa ser alcançado sem hipoglicemia significativa ou outros efeitos adversos do tratamento, e que metas menos rigorosas de A1C (como <8%) podem ser apropriadas para indivíduos de maior risco 13.
O médico deve assumir o compromisso de buscar o melhor controle glicêmico, equilibrando riscos, potenciais benefícios e implicações na qualidade de vida de seus pacientes, que muitas vezes precisam gerenciar múltiplas condições crônicas e medicamentos, não raro com limitação social e financeira.
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Referências:
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2. Posicionamento Oficial SBD, SBPC-ML, SBEM e FENAD 2017/2018. Atualização sobre hemoglobina glicada (A1c) para avaliação do controle glicêmico e para o diagnóstico do diabetes: aspectos clínicos e laboratoriais.
3. ABBASI, J. For Patients With Type 2 Diabetes, What’s the Best Target Hemoglobin A1c? JAMA, v.319, n.19, p.2367-2369, jun. 2018. doi:10.1001/jama.2018.5420.
4. Laiteerapong, N et al. Individualized Glycemic Control for U.S. Adults With Type 2 Diabetes A Cost-Effectiveness Analysis. Annals of Internal Medicine, v.168, n.3, p.170-178, feb. 2018. doi: 10.7326/M17-0537.
5. Conlin, P R et al. Synopsis of the 2017 U.S. Department of Veterans Affairs/U.S. Department of Defense Clinical Practice Guideline: Management of Type 2 Diabetes Mellitus. Annals of Internal Medicine, v.167, n.9, p. 655-663, nov. 2017. doi:10.7326/M17-1362.
6. QASEEM, A et al. Hemoglobin A1c Targets for Glycemic Control With Pharmacologic Therapy for Nonpregnant Adults With Type 2 Diabetes Mellitus: A Guidance Statement Update From the American College of Physicians. Annals of Internal Medicine, v. 167, n. 8, p. 569-576, apr. 2018. doi: 10.7326/M17-0939.
7. Endocrine Society. Current Press Releases. Diabetes organizations strongly disagree with ACP’s higher blood glucose targets for type 2 diabetes. March 09, 2018.
8. Mohammed, K A et al. Cardiovascular and renal burdens of prediabetes in the USA: analysis of data from serial cross-sectional surveys. The Lancet Diabetes Endocrinology, v. 6, n. 5, p. 392-403, may. 2018. doi: 10.1016/S2213-8587(18)30027-5.
9. Palmer, SC et al. Comparison of Clinical Outcomes and Adverse Events Associated with Glucose-Lowering Drugs in Patients with Type 2 Diabetes. A Meta-analysis. JAMA, v. 316, n. 3, p. 313-324, jul. 2016. doi: 10.1001/jama.2016.9400
10. Zheng, SL et al. Association Between Use of Sodium-Glucose Cotransporter 2 Inhibitors, Glucagon-like Peptide 1 Agonists, and Dipeptidyl Peptidase 4 Inhibitors With All-Cause Mortality in Patients With Type 2 Diabetes. A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA, v. 319, n. 15, p.1580-15912018. doi:10.1001/jama.2018.3024
11. NEDA, L et al. The Legacy Effect in Type 2 Diabetes: Impact of Early Glycemic Control on Future Complications (the Diabetes & Aging Study). Diabetes Care, aug. 2018.https://doi.org/10.2337/dc17-1144
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