Diariamente, médicos de todas as especialidades se deparam com pacientes que apresentam queixas compatíveis com intolerância à lactose. Por isso é importante conhecer aspectos gerais desta condição tão prevalente. A proposta deste artigo é fazer uma revisão sobre causas, diagnóstico e tratamento de indivíduos que apresentam sintomas de intolerância à lactose.

Intolerância à lactose

Fisiopatologia: A lactose é um dissacarídeo composto de galactose e glicose, ligados via ligação β-1,4 glicosídica, que não pode ser absorvido através do epitélio do intestino delgado via transportadores. Sua absorção depende da ação da lactase, enzima da borda em escova intestinal, expressa nas pontas das vilosidades, predominantemente no jejuno. A lactase é capaz de hidrolizar a ligação β-glicosídica da lactose, gerando glicose e galactose, que serão absorvidas pelos enterócitos, alcançando então a corrente sanguínea.

A lactose não absorvida cria um gradiente osmótico que impulsiona a secreção de líquidos e eletrólitos para o lúmen intestinal. Com isso ocorre dilatação do intestino delgado e aceleração do trânsito intestinal. Subsequentemente, fermentação da lactose não absorvida por bactérias residentes no cólon leva à produção de ácidos graxos de cadeia curta e gases (CO2, CH4 e H2). Associados, esses fatores são responsáveis pelos sintomas da intolerância à lactose.

Causas

É importante distinguir entre hipolactasia primária e causas secundárias de má digestão da lactose, pois apresentam implicações patogênicas e terapêuticas distintas.

  1. Deficiência primária adquirida de lactase: Forma altamente prevalente. Afeta 65% a 74% da população mundial, com amplas variações regionais e étnicas.

    A atividade da lactase em humanos é mais alta imediatamente antes do desmame, e sua expressão diminui para 5% a 10% dos níveis infantis na idade adulta, e, apesar de se tratar de uma condição habitualmente encontrada em mamíferos adultos normais, o termo “deficiência de lactase” foi estabelecido na literatura.

  2. Intolerância secundária à lactose: pode resultar de várias condições gastrointestinais que geram danos à superfície de absorção do intestino delgado, incluindo doença celíaca, doença de Crohn, supercrescimento bacteriano do intestino delgado, infecções intestinais, e enterite por radiação/quimioterapia.
  3. Deficiência congênita de lactase: doença autossômica recessiva rara, resultante de alterações na região de codificação do gene da lactase, que se manifesta com diarreia iniciando poucos dias após o nascimento.

O que está relacionado à persistência da atividade da lactase no envelhecimento?

  • Genética/epigenética: podem influenciar a atividade da lactase intestinal. Esse é o mecanismo que explica a persistência de níveis altos de lactase numa minoria de humanos até a idade adulta;
  • Hábitos de vida: nem a ingestão prolongada de lactose, nem a exclusão de lactose da dieta influenciam a capacidade do intestino delgado de absorver lactose.

Tem sido sugerido que a ingestão persistente da lactose em humanos levaria a alteração do microbioma fecal, gerando maior atividade final da β-galactosidase, e melhora dos sintomas induzidos pela ingestão de lactose.

Quadro clínico

Quando o volume de ingestão de lactose excede a capacidade enzimática da lactase, sintomas de intolerância à lactose podem se desenvolver, o que costuma ocorrer em apenas cerca de um terço dos “maus absorvedores”.

Os sintomas predominantes da intolerância à lactose são sensação de inchaço e desconforto abdominal, flatulência e diarreia, que surgem após o consumo de alimentos contendo lactose. Os pacientes também costumam se queixar de borborigmos e, às vezes, náuseas e vômitos. Mais raramente, há aumento da produção de metano com atraso do tempo de trânsito intestinal e constipação.

Alguns autores relataram que os sinais e sintomas da intolerância à lactose podem não se restringir ao intestino, ocasionando manifestações neurológicas como dor de cabeça, vertigem, comprometimento da memória e letargia, ou arritmia cardíaca, apesar de infrequentes (<20%). Uma das explicações para esses sintomas sistêmicos poderia ser a produção de metabólitos tóxicos, gerados pela fermentação da lactose por bactérias do cólon, alterando os mecanismos de sinalização celular.

Na presença de queixas sistêmicas é importante excluir alergia à proteína do leite de vaca, que ocorre em até 20% dos pacientes com sintomas de intolerância à lactose.

Indivíduos com síndrome do intestino irritável são mais sintomáticos, mesmo com níveis mais baixos de consumo de lactose, resultando em aumento dos níveis autorreferidos de intolerância e restrição.

Diagnóstico

Embora não exista um consenso ou critério claro para o diagnóstico da intolerância à lactose, vários testes validados estão disponíveis para auxiliar no diagnóstico quando há suspeita clínica de sintomas abdominais decorrentes da má absorção de lactose.

Biópsia intestinal: Amostras de biópsia do intestino delgado podem ser analisadas quanto à atividade da lactase, embora a expressão da enzima no intestino delgado possa ser irregular levando a resultado falso-negativo. Além disso, o exame é invasivo, e não costuma fazer parte da prática clínica diária.

Teste de tolerância à lactose:

  • Método: envolve a coleta de amostras seriadas de sangue após a ingestão de uma carga de 50g de lactose. A digestão da lactose determina a elevação da glicose no sangue, e a ausência de tal aumento indica falha na absorção da lactose.
  • Interpretação: Um aumento da glicose sanguínea de pelo menos 20 mg/dL a partir dos valores basais indica digestão adequada da lactose e absorção dos monossacarídeos individualmente. Em pacientes com intolerância à lactose o teste pode desencadear o aparecimento de sintomas gastrointestinais graves.

Os resultados dos testes podem ser imprecisos quando o supercrescimento bacteriano do intestino delgado está presente (falso negativo).

Teste respiratório de hidrogênio:

  • Método simples e não invasivo de avaliação da má absorção de lactose. Administra-se 25g de lactose, seguido da medição da excreção de hidrogênio na respiração por 3 a 4 horas.
  • nterpretação: o resultado é positivo para má digestão quando a excreção de hidrogênio na respiração excede 20 partes por milhão, resultante da fermentação bacteriana intraluminal de lactose não absorvida e não digerida.

O teste é 78% sensível e 98% específico para o diagnóstico de má absorção de lactose, porém não está amplamente disponível na prática clínica diária, além de apresentar algumas limitações como:

  • Teste falso-negativo: pode ser decorrente da incapacidade da flora colônica produzir H2 após a ingestão de carboidratos não absorvíveis, ou após uso recente de antibióticos;
  • Teste falso-positivo: é menos frequente. Deve-se principalmente ao crescimento excessivo de bactérias no intestino delgado ou à microflora oral anormal.

Teste genético: Até o momento, realizar testes genéticos tem pouca aplicabilidade no diagnóstico de intolerância à lactose.

Conduta sugerida no diagnóstico e manejo da intolerância à lactose

Paciente com sintomas de intolerância à lactose

Pesquisar causas secundárias de intolerância à lactose: doença celíaca, doença de Crohn, supercrescimento bacteriano do intestino delgado e infecções intestinais (giárdia, rotavírus, norovírus).
Considerar teste com dieta restritiva em lactose:
Pacientes com intolerância clínica à lactose em geral toleram cerca de 12 g de lactose sem piora dos sintomas;
Importante manter ingesta adequada de cálcio em 700-1200 mg/dia;
Também é recomendável verificar os níveis de vitamina D para garantir absorção adequada do cálcio alimentar.

Alimentos ricos em cálcio, sem lactoseg cálcio/porção
Brócolis 70 g60
Figo desidratado 2 unidades 65
Suco laranja fortificado 120 mL150
Leite de soja fortificado 200 mL240 mg
Camarão 150 g45

 

Laticínios com baixo teor de lactoseg lactose/porção
1 copo de leite12 – 13
180 mL iogurte5 – 10
½ xícara queijo cottage 3
30 mL queijo cheddar<0,1
1 colher de sopa manteiga<0,1

Para facilitar a avaliação da quantidade de cálcio ingerida, a International Osteoporosis Foundation disponibiliza uma calculadora que está acessível online.

 

3) Seguir investigação com testes diagnósticos se os sintomas persistirem.

Manejo dos sintomas

Orientações dietéticas:

  • A restrição de produtos lácteos na dieta leva a uma redução significativa na ingestão de substâncias como cálcio, fósforo e vitaminas, e pode estar associado à diminuição da densidade mineral óssea;
  • Ao invés da restrição total, reduzir o consumo de lactose é a conduta mais recomendada, visto que indivíduos com intolerância clínica à lactose são capazes de consumir 240 mL (1 xícara) de leite (12 g de lactose) sem piora dos sintomas;
  • Produtos à base de lactose pré-hidrolisada, incluindo queijos, leite e sorvete, podem substituir alimentos contendo lactose tradicional;
  • O consumo de lactose com uma refeição “dilui” a lactose como resultado de atraso no esvaziamento gástrico;
  • Distribuir o consumo de leite ao longo do dia também pode ser uma estratégia útil.

Tratamento medicamentoso:

Terapia de suplementação enzimática com lactase de fontes não humanas: promove a quebra da lactose em glicose e galactose, permitindo uma melhor absorção do nutriente, com redução dos sintomas. Também reduz a excreção respiratória de hidrogênio quando o teste de tolerância à lactose é realizado.
Na hipolactasia primária, o leite e os produtos lácteos devem ser restritos por 2-4 semanas, tempo necessário para remissão de sintomas. Então, deve-se recomendar uma reintrodução gradual de laticínios com baixa lactose até uma dose limiar de tolerância individual.

Na hipolactasia secundária, associada a vários distúrbios intestinais, a dieta é necessária apenas até a regressão desses distúrbios adquiridos.

Curiosidades

A lactose corresponde a cerca de 2-8% do leite (em peso), embora a quantidade seja variável entre espécies e indivíduos. A tabela abaixo traz alguns exemplos.

Tipo de AlimentoConteúdo de lactose em gramas
Leite Humano 100 mL7,2
Leite de vaca 100 mL4,7
Iogurte 1 copo4 a 17
Queijo mussarela 28 g0,08 a 0,9
Ricota ½ copo0,3 a 6
Sorvete ½ copo2 a 6

Conforme determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os fabricantes são obrigados a informar a presença de lactose nos alimentos. Isso vale para alimentos com mais de 100 miligramas de lactose para cada 100 gramas ou mililitros do produto. Ou seja, qualquer alimento que contenha lactose em quantidade acima de 0,1% deverá trazer a expressão “Contém lactose” em seu rótulo. O limite de 100 miligramas é entendido como seguro para as pessoas com intolerância à lactose.

Os fabricantes de alimentos poderão também empregar a expressão “baixo teor de lactose” ou “baixo em lactose” nos casos em que a quantidade de lactose estiver entre 100 mg e 1 g por 100g ou mililitros do alimento pronto, conforme instruções do fabricante.

As regras determinam três tipos de rotulagem para a lactose no mercado brasileiro de alimentos: “zero lactose“, “baixo teor”, ou “contém lactose”.

Essas medidas tornam mais simples o planejamento do consumo de lactose pelos pacientes, evitando o aparecimento de sintomas e garantindo uma boa qualidade de vida.

 

Referências bibliográficas:

  • Dejan Micic et al. Clinical Approach to Lactose Intolerance. JAMA. 2019 Sep 26;
  • Rejane Mattar et al. Lactose intolerance: diagnosis, genetic, and clinical factors. Clin Exp Gastroenterol. 2012; 5: 113–121;
  • T di Rienzo et al. Lactose intolerance: from diagnosis to correct management. European Review for Medical and Pharmacological Sciences. 2013; 17(Suppl 2): 18-25;
  • Portal ANVISA. INTOLER NCIA À LACTOSE – Rotulagem de lactose em alimentos tem regra publicada;
  • UpToDate – Lactose content of different foods.

 

Artigo publicado no Portal PEBMED em 01 Novembro de 2019

 

Autora: Daniele C. Tokars Zaninelli, endocrinologista em Curitiba.