Em maio de 2020 publicamos um artigo falando sobre as consequências metabólicas da pandemia que ainda começava a se desenvolver em nosso país. Na época, muitos estudos já haviam sido publicados, especialmente em outros países, sugerindo ou já evidenciando o impacto das mudanças do estilo de vida e do prejuízo no gerenciamento de doenças crônicas — entre outros fatores — na saúde da população. Já havia muitos sinais de que uma crise de saúde global devido à Covid-19, agora claramente visível, se instalava.

Populações mais vulneráveis como idosos e portadores de doenças crônicas não transmissíveis (DNTs) foram as mais afetadas, o que já era esperado com base em dados de epidemias anteriores, e conhecendo-se o fato de que as DNTs se constituem na principal causa de morbimortalidade na população global, além de serem importantes fatores de risco para uma evolução mais grave da Covid-19. Hospitalizações e mortes desproporcionais ocorreram em todo o mundo, e estiveram relacionadas não apenas à infecção pelo novo coronavírus, mas também à descompensação das doenças de base.

O que esperar para o futuro?

Até agora a busca por respostas para um melhor atendimento a nossos pacientes frente à pandemia foi uma prioridade, incluindo especialmente a busca por maneiras eficazes e seguras de detecção, tratamento e prevenção da doença, entre tantas outras questões que ainda precisam ser respondidas. Com a perspectiva do início da vacinação contra o SARS-CoV-2 espera-se uma redução do número de casos e, mais do que isso, uma redução no risco de evolução para as formas mais graves da doença, o que nos traz conforto e esperança. Seria hora de ir além?

Já é hora de nos perguntarmos quais foram nossos principais erros e acertos? O que deve ser mantido e o que deve ser descartado para convivermos com o que tem sido chamado de “novo normal”? Estamos preparados para conseguir melhores resultados ainda nesta pandemia? Estaremos mais preparados para o enfrentamento de situações semelhantes no futuro? É claro que não há respostas simples para tantas situações complexas.

Uma revisão de literatura realizada por Barone et al. traz evidências de que a crise de saúde nacional e global causada pela Covid-19 poderia ter sido evitada ou minimizada se medidas para proteger as populações de alto risco fossem implementadas em tempo hábil. A revisão reuniu experiências de diferentes países, destacando pontos fortes e fracos em resposta à pandemia por Covid-19.

Veja abaixo 10 questões abordadas pelos autores:

  1. É lamentável que a maior parte do conhecimento disponível de epidemias anteriores de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), especialmente sobre o maior risco de gravidade e mortalidade em pessoas com diabetes e outras DNTs tenha sido ignorado, e que as ações preventivas sobre essas populações não tenham sido oportunas e eficazes na maior parte do mundo.
  2. Muitas revistas científicas dedicaram edições completas a artigos sobre Covid-19. A maioria deles forneceu dados relevantes sobre aspectos epidemiológicos, especificidades e dinâmica da infecção, vacinas e desenvolvimento do tratamento e/ou medidas adotadas para prevenção da transmissão, porém pouco foi compartilhado em termos de agrupamentos de lições globais para proteção das pessoas com diabetes e outras DNTs.
    É fundamental destacar que, além da prevenção do contágio, as medidas devem ter como foco a minimização do risco de agravamento em caso de infecção.
  3. Diferentes grupos de pesquisa relataram que os níveis glicêmicos foram independentemente associados às chances de hospitalização, gravidade e morte de pacientes com Covid-19. Consequentemente, manter a glicemia no alvo tornou-se um mantra durante a pandemia.
  4. O impacto da pandemia, especialmente nas populações de maior risco, era previsível. Pesquisadores da China já haviam revelado em 2006 que uma história de diabetes e níveis elevados de glicose no plasma eram preditores independentes de morbidade e mortalidade entre pacientes com SARS. No entanto, o desenvolvimento de vacinas e tratamentos promissores foi interrompido devido à ausência de ressurgimento da SARS, apesar do conhecimento e das previsões de transmissão contínua, bem como da necessidade de proteção precoce das populações de maior risco.
  5. Na ausência de uma vacina ou antivirais eficazes contra o SARS-CoV-2, políticas tiveram que ser implementadas rapidamente. As primeiras medidas pareceram extremamente limitadas em diferentes partes do mundo. Entre os países que experimentaram alta carga de Covid-19, o Brasil foi alertado de que 34–54,5% de sua população adulta estava em risco de Covid-19 grave.
  6. A crise dos sistemas globais de saúde provocada pela Covid-19 é, na realidade, consequência da ineficiência na adoção de medidas precoces e eficazes de proteção aos diabéticos, outras DNTs e idosos. Os autores concluíram que medidas eficazes para proteger indivíduos com comorbidades teriam potencialmente reduzido pelo menos metade da ocupação dos hospitais, número total de mortes e carga de Covid-19 nos sistemas de saúde, poupando parte de seu impacto na economia global.
  7. Durante a pandemia, alterações glicêmicas foram relacionadas à rotina alterada e dificuldade de acesso a serviços de saúde e medicamentos. Entre outros potenciais motivos foram citados o aumento do consumo alimentar, redução da atividade física, aumento do tempo de tela (TV, internet), adiamento ou cancelamento de exames e consultas médicas e interrupção do tratamento, até por indisponibilidade de insumos.
  8. No caso do diabetes e outras DNTs, embora medidas gerais de distanciamento físico, uso de máscaras faciais, higienização das mãos e permanência em casa fossem fundamentais, estratégias adicionais para proteger a saúde desses indivíduos e a rotina de autocuidado precisavam ser planejadas para garantir o acesso a serviços de saúde e medicamentos de qualidade, além de garantir a manutenção de um estilo de vida saudável.
  9. Além de bloqueios gerais, testes, rastreamento, isolamento e medidas de higiene, outras intervenções específicas para o controle do diabetes e das comorbidades mostraram-se cruciais para permitir a continuidade dos serviços de atendimento durante a pandemia. Essas intervenções incluíram teleconsulta, educação digital e monitoramento à distância, prescrições eletrônicas, opções de entrega de medicamentos e atendimento domiciliar.
  10. Assim como os ajustes nos sistemas de saúde foram fundamentais, o compromisso em comunicar e educar adequadamente as pessoas durante a pandemia esteve entre os principais desafios a serem enfrentados. O artigo cita diversas iniciativas da Sociedade Brasileira de Diabetes, assim como de outras importantes entidades ao redor do mundo, nesse processo que alcançou não só a classe médica e outros profissionais de saúde, como também a população leiga.

Embora não pareça que o conhecimento de epidemias anteriores de SARS tenha sido usado de forma eficiente para prevenir oportunamente a crise de saúde global provocada pela pandemia Covid-19, alguns países fizeram um bom trabalho adotando medidas específicas, além de bloqueio, teste, rastreamento e isolamento.

A figura mostra a taxa de letalidade e casos de Covid-19 por milhão de pessoas de países selecionados citados neste artigo, de 22 de janeiro a 5 de setembro de 2020.

 

Os países que adotaram medidas gerais precoces por meio de ajustes rápidos no sistema de saúde, e especificamente focados no apoio a grupos de maior risco como idosos, pessoas com diabetes e outras DNTs, experimentaram uma crise de saúde menos grave.

Lições aprendidas e conclusões

Diversas soluções digitais, incluindo plataformas de dados, novos aplicativos, chatbots, mídia social tradicional e mensagens SMS foram adotadas para disseminar informações, educar pacientes, rastrear indivíduos e monitorar sua saúde, apoiar o autocuidado e permitir teleconsultas em todo o mundo. A telemedicina e outras estratégias digitais estiveram entre aquelas de maior sucesso durante a pandemia e são vistas como permanentes.

Apesar disso as desigualdades socioeconômicas constituíram uma barreira adicional no planejamento de medidas de proteção adequadas.

Sistemas resilientes para prevenir e tratar diabetes e outras DNTs levam a uma menor prevalência de DNTs e melhor controle metabólico, resultando em redução da morbidade e mortalidade pandêmica.

Parcerias entre o setor público, privado e sem fins lucrativos, incluindo a sociedade científica e civil, mostraram adicionar alternativas importantes para ajudar os carentes e melhorar o atendimento.

Nesse ínterim, identificou-se que planos descentralizados e descoordenados, falta de infraestrutura e iniquidades sociais constituem barreiras para o sucesso das respostas dos governos e dos sistemas de saúde.

Somente por meio de uma ação coordenada globalmente seremos capazes de prevenir taxas de mortalidade extremas, evitar as terríveis consequências dos sistemas globais de saúde e o colapso econômico que vários países enfrentaram durante a pandemia Covid-19.

 

Referências bibliográficas:

  • Barone MTU et al. Covid-19 associated with diabetes and other noncommunicable diseases led to a global health crisis. Diabetes Research and ClinicalPractice. 2020 Dec 9;171:108587. doi: 10.1016/j.diabres.2020.108587.
  • Horton, R. Offline: Covid-19—what have we learned so far? The Lancet. Vol 396 December 5, 2020. doi: 10.1016/S0140-6736(20)32584-8.
     

Artigo publicado no Portal PEBMED em 25 Janeiro de 2021.

 

Autora: Daniele C. Tokars Zaninelli, endocrinologista em Curitiba.